Dezembro de 2020.
Marcel e eu íamos de carro de Feira de Santana pra Itatim como normalmente fazíamos quase todos os finais de semana, não tínhamos definido o objetivo com antecedência e durante a viagem que dura cerca de 1h20, escolhendo na lista de vias que ainda não tínhamos feito veio a ideia, não lembro de quem foi:
Vamos na Seu Vavá?
Bora.
Tínhamos o equipamento, o croqui e já tínhamos ouvido falar em duas tentativas de repetição ao longo dos anos após sua abertura (2004), ambas foram abortadas antes do final da via.
Face Norte do Morro do Talhado |
Deixamos pra entrar domingo, sendo que segunda teríamos que estar de volta à Feira de Santana pra trabalhar. Acordamos ainda de madrugada e entramos bem cedo na via, Marcel tocou a primeira enfiada, curtinha e fácil, até um platô alto com uma árvore grande. De lá observamos bem o croqui pra entrar no diedro correto, mais à esquerda, já bastante coberto de mato. Marcel tocou essa também, que saiu na cadena, um diedro de 35m contínuo e bom de proteger! Na primeira parada está a primeira das poucas chapas da via, dá pra equalizar com um camalot #1 ou 2.
Marcel na Primeira Enfiada |
Subi limpando também em livre pra provar a bonita escalada. A terceira enfiada comecei achando que ia dar uns passos em livre, mas a fenda vai ficando pior de proteger, recorri logo aos estribos. Segui lentamente arrancando mato, buscando locais pra proteger e poder progredir, em alguns momentos me via sem solução, mas não dava pra morar no meio da enfiada, então a solução aparecia, às vezes era um nut #1, às vezes um cliff de agarra onde precisava subir no último degrau, outras vezes um micronut em uma fenda quase paralela, onde caberia algum C3 que não tínhamos no rack…cheguei então em um teto, com blocos entalados, onde tem um nut abandonado. Fiz a besteira de arrancar um pouco de mato que cobria os blocos e o que vi me deixou mais apreensivo, três blocos vazados por trás e aparentemente sustentados lateralmente por um bloquinho do tamanho de um tijolo. coloquei umas 3 ou 4 peças acima dos blocos, em outros blocos aparentemente mais bem encaixados e consegui após vários minutos de tensão dominar os blocos.
Cauí na terceira enfiada, passando pelos blocos |
Ainda na terceira enfiada a inclinação cai, e a via segue em livre em rocha ruim por alguns metros. Nesse dia estava forrado de mato também, então eu arrancava um pouco de mato, limpava a terra das agarras, via que a agarra era duvidosa, rezava, dava um passo e repetia. Cheguei então à uma fendinha onde entrou uma boa peça, pra cima mais rocha ruim e uma chapa à esquerda. Tentei por muito tempo mas já estava bloqueado, após umas 4h de perrengue pra guiar menos de 30m. Pedi substituição e Marcel finalizou a enfiada, em livre na rocha podre.
Marcel e Cauí na P3, fim da primeira tentativa. |
Eram quase 16h e faltavam 2 enfiadas longas pro cume, não tivemos que pensar muito pra decidir que não daria tempo, e não teríamos cabeça pra terminar naquele dia. Não pudemos deixar corda fixa pois não voltaríamos tão cedo à Itatim. Baixamos tristes por não ter concluído, mas felizes por ter chegado até a P3 com muita luta! Prometemos não voltar mais lá.
Foto que tirei dos blocos da terceira durante o rapel, pra lembrar de não passar mais por lá. |
Janeiro de 2022.
Cauí: Eaí, qual a boa do fim de semana?
Marcel: Ah, não sei, vamos em alguma missão!
Cauí: Limpar a Bahia of Happiness pode ser né? Tem Seu Vavá também…(falei brincando)
Marcel: Prefiro ir no Seu Vavá.
Dessa vez nós tínhamos 5 micronuts a mais no rack, e disponibilidade pra fixar as cordas e voltar no dia seguinte caso necessário. Após uma chuva forte na noite anterior, acordamos cedo e resolvemos esperar mais um pouco achando que a rocha poderia estar molhada.
Passamos pela casa dos moradores próximo à base (que mais uma vez nos receberam super bem) que nos informaram que não choveu por lá essa noite…Fizemos a trilha e dessa vez já sabendo o caminho subimos até o platô da P1 com as mochilas nas costas, e lá começamos a escalada, dessa vez por volta das 8h30 da manhã do sábado.
Marcel na P2 |
Cheguei à peça de onde abandonei da ultima vez, consegui acessar a chapa à esquerda e vi um furo de cliff acima, depois mais dois que me levaram até a parada sem precisar passar pelas agarras podres que o Marcel pegou da última vez. Fiquei feliz pois a escalada fluiu bem mais, devo ter gasto metade do tempo que levei na última tentativa.
Terceira Enfiada |
Marcel subiu e pegou a ponta da corda pra guiar a quarta enfiada, que passa por uma grande chaminé fendada que vai ficando cada vez mais inclinada. Começando em livre em agarras bem duvidosas, e recorrendo aos estribos quando a inclinação aumentou lá se foi o menino Marcel, fluindo bem chegou em uma chapa, onde inocentemente achou que pudesse ser a parada. Não tive dúvidas em falar “Nada disso, só depois que virar o negativo lá em cima!” kkkkkk.
Marcel na Quarta Enfiada |
E ele seguiu, virou o negativo e a fenda larga continuava no positivo, ele já tinha descido umas 2x pra recuperar peças, especialmente as grandes, e estava nas últimas, e a chapa uns 10m acima ainda. Montou uma parada em móvel e eu subi, dessa vez fiz a sequencia final, com peças pequenas, dois furos de cliff e mais algumas peças grandes até a P4. Eram 18h, levamos a tarde toda pra guiar 50m, tínhamos mais 30min de luz. Não estávamos nada animados em escalar de noite, dada a exigência da escalada, então optamos por fixar as cordas e descer. Levamos ainda um bom tempo, pois tem rapéis negativos, onde temos que descer guiando a corda pra não ficar no vazio, cuidando pra fazer os fracionamentos corretos evitando arestas, etc. Usamos 2 cordas de 70m da P4 até o chão e sobrou um pouco. Se fossem duas de 60m acredito que chegaria pelo menos até o platô da P1, mas não dá pra deixar muita folga nos fracionamentos. Por curiosidade, na descida fixando as cordas achei um furo de cliff acima do nut entalado nos blocos da terceira enfiada.
Domingo dei uma aula de manhã e paramos o carro pra começar a trilha às 11h da manhã. Equivocados no horário, mas foi o que deu. Jumareamos rapidamente e pouco depois das 13h eu comecei a última enfiada! Começa em uma fenda larga com peças grandes, tem até cara de ser mais factível em livre, mas fui em artificial mesmo, segui feliz e contente com a fluidez da escalada, a fenda continua após uma rampinha já mais fina, até acabar onde cabe um #1 a prova de bomba. Minha animação foi abalada pq vi um trecho liso acima e gastei um tempinho procurando furo de cliff e não vi nada.
Jumareando até a P4 no segundo dia
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Achei uma colocação de um #.3 umm pouco acima, subi nele, procurei mais por furos de cliff, subi no penúltimo degrau e queda! A peça escapou sem aviso prévio. Felizmente a peça de baixo segurou tranquilamente. Desisti da procura e olhei pro lado, tinha umas fendinhas baixas e algumas agarras, dei uma voltinha de 2m pro lado direito com clifffs de agarra, coloquei 2 nuts, subi com cliffs de agarra até conseguir por um pé em uma agarra no vertical e voltei pra esquerda meio nos cliffs meio nas agarras até alcançar a continuação da fenda, após o trecho liso. Coloquei uma peça meio sem enxergar bem e segui pela fenda fina mais uns 2m até a chapa. Essa voltinha deve ter consumido quase 1h facilmente.
Uma canaleta com cara de escalada em livre e uma chapa uns 10m acima era o que eu enxergava, e parecia a última chapa da via antes de virar pro positivo. Segui em livre, coloquei umas peças mais ou menos boas e a fenda acaba novamente me obrigando a mais um lance pra chegar na chapa. Achei estranho, desci, descansei, reforcei as peças e escalei novamente, nesse momento tive que apertar dois regletes bem pequenos e subir os pés nas últimas agarras da canaleta pra me esticar e costurar a chapa!
Tínhamos acabado o vertical! Pra cima a inclinação ficava positiva, a felicidade voltou! kkkkkkkk
Subi em livre o trecho positivo, cheguei a um platô de mato onde fiquei procurando a chapa e nada…toquei mais um lance numa rampinha final e lá encontrei a tão sonhada chapa do cume!!!
Eram quase 17h, fixei a corda, desci pra fazer um reenvio na última chapa do vertical e avisar o Marcel que já não me escutava mais pra ele poder subir. Estávamos os dois no cume em um fim de tarde mágico após concluir uma via que tinha sido aberta 18 anos antes, por dois visionários (malucos) e ainda não havia sido repetida. Via que exigiu de nós dois muuuuuuita persistência, técnica e sangue frio.
Marcel chegando no cume |
Como as paradas são mistas, os rapéis em sua maioria são de chapas simples. Pra ficar pendurados o mínimo possível em uma chapa só nós rapelamos sempre de cordas emendadas. Do cume direto pra P4, onde já tínhamos “testado” a chapa, mas não sei se foi uma boa, talvez seja melhor fracionar esse primeiro rapel, a corda ficou super pesada pra puxar, e o final foi negativo, mas deixamos a retinida fixa pra acessar a parada. Da P4 rapelamos pra P3, onde tem uma chapa próxima que dá pra backupear, esse tem que colocar umas peças pra guiar, se não não dá pra alcançar a parada abaixo, por ser negativo também. Da P3 um rapel longo até o platô da P1 e de lá rapel curto da árvore pro chão. Deixamos P3 e P4 com malha-rápida, e as chapas estavam em estado razoável. Precisa de material pra abandono nos rapéis superiores.
Com certeza essa é de longe a escalada mais exigente de Itatim, e uma das mais exigentes que já fiz na vida. Tenho boa familiaridade com o uso da técnica de artificial pra abertura de vias, entretanto escalei poucas vias em artificial ao longo da vida, ainda perco muito tempo desconfiando de colocações mais delicadas antes de realmente me pendurar nelas, acredito que uma dupla mais familiarizada e eficiente com esse estilo de escalada possa repetir em um dia, começando bem cedo e talvez finalizando a noite. Cordadas mais humanas creio que levarão dois dias mesmo, considere fixar a corda na P3 ou na P4 no primeiro dia. Farei um croqui mais detalhado, caso alguém se anime com esse relato e queira repetir também!
Cumeeee! |
Obrigado Lula Coslope e Charlie Alves pela audaciosa linha deixada em Itatim e Marcel pela parceria de sempre nas roubadas, mas na próxima escolhe algo mais light!!
Croqui Original – Guia de Escalada de Itatim e Região (Adilson Otto, 2011) Disponível <aqui> |
Boa cauízera…. otimo relato. Daqui ha uns 35 anos ouso entrar nesse perrengue…
Quase um doutorado do climb